Ando
em crise, numa boa, nada de grave. Mas, ando em crise com o tempo. Que
estranho "presente" é este que vivemos hoje, correndo sempre por nada,
como se o tempo tivesse ficado mais rápido do que a vida, como se nossos
músculos, ossos e sangue estivessem correndo atrás de um tempo mais
rápido.
As utopias liberais do século 20 diziam que teríamos mais ócio, mais
paz com a tecnologia. Acontece que a tecnologia não está aí para
distribuir sossego, mas para incrementar competição e produtividade, não
só das empresas, mas a produtividade dos humanos, dos corpos. Tudo
sugere velocidade, urgência, nossa vida está sempre aquém de alguma
tarefa. A tecnologia nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas,
fábricas vivas, chips, pílulas para tudo.
Temos de funcionar,
não de viver. Por que tudo tão rápido? Para chegar aonde? A este mundo
ridículo que nos oferecem, para morrermos na busca da ilusão narcisista
de que vivemos para gozar sem parar? Mas gozar como? Nossa vida é uma
ejaculação precoce. Estamos todos gozando sem fruição, um gozo sem
prazer, quantitativo. Antes, tínhamos passado e futuro; agora, tudo é um
"enorme presente", na expressão de Norman Mailer. E este "enorme
presente" é reproduzido com perfeição técnica cada vez maior, nos
fazendo boiar num tempo parado, mas incessante, num futuro que "não pára
de não chegar".
Antes, tínhamos os velhos filmes em
preto-e-branco, fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam a
sensação de que o passado era precário e o futuro seria luminoso. Nada.
Nunca estaremos no futuro. E, sem o sentido da passagem dos dias, da
sucessibilidade de momentos, de começo e fim, ficamos também sem
presente, vamos perdendo a noção de nosso desejo, que fica sem sossego,
sem noite e sem dia. Estamos cada vez mais em trânsito, como carros,
somos celulares, somos circuitos sem pausa, e cada vez mais nossa
identidade vai sendo programada. O tempo é uma invenção da produção. Não
há tempo para os bichos. Se quisermos manhã, dia e noite, temos de ir
morar no mato.
Eu
vi os índios descobrindo o tempo. Eles se viam crianças, viam seus
mortos, ainda vivos e dançando. Seus rostos viam um milagre. A partir
desse momento, eles passaram a ter passado e futuro. Foram incluídos num
decorrer, num "devir" que não havia. Hoje, esses índios estão em
trânsito entre algo que foram e algo que nunca serão. O tempo foi uma
doença que passamos para eles, como a gripe. E pior: as imagens de 50
anos é que pareciam mostrar o "presente" verdadeiro deles. Eram mais
naturais, mais selvagens, mais puros naquela época. Agora, de calção e
sandália, pareciam estar numa espécie de "passado" daquele presente.
Algo decaiu, piorou, algo involuiu neles. Lembrando disso, outro dia,
fui atrás de velhos filmes de 8mm que meu pai rodou há 50 anos também.
Queria ver o meu passado, ver se havia ali alguma chave que explicasse
meu presente hoje, que prenunciasse minha identidade ou denunciasse algo
que perdi, ou que o Brasil perdeu... Em meio às imagens trêmulas,
riscadas, fora de foco, vi a precariedade de minha pobre família de
classe média, tentando exibir uma felicidade familiar que até existia,
mas precária, constrangida; e eu ali, menino comprido feito um bambu no
vento, já denotando a insegurança que até hoje me alarma. Minha crise de
identidade já estava traçada. E não eram imagens de um passado bom que
decaiu, como entre os índios. Era
um presente atrasado, aquém de si mesmo. A mesma impressão tive ao ver o
filme famoso de Orson Welles, It's All True, em que ele mostra o
carnaval carioca de 1942 - únicas imagens em cores do País nessa década.
Pois bem, dava para ver, nos corpinhos dançantes do carnaval sem som,
uma medíocre animação carioca, com pobres baianinhas em tímidos meneios,
galãs fraquinhos imitando Clark Gable, uma falta de saúde no ar, uma
fragilidade indefesa e ignorante daquele povinho iludido pelos
burocratas da capital. Dava para ver ali que, como no filme de minha
família, estavam aquém do presente deles, que já faltava muito naquele
passado.
Vendo filmes americanos dos anos 40, não sentimos
falta de nada. Com suas geladeiras brancas e telefones pretos, tudo já
funcionava como hoje. O "hoje" deles é apenas uma decorrência contínua
daqueles anos. Mudaram as formas, o corte das roupas, mas eles, no
passado, estavam à altura de sua época. A Depressão econômica tinha
passado, como um grande trauma, e não aparecia como o nosso
subdesenvolvimento endêmico. Para os americanos, o passado estava de
acordo com sua época. Em 42, éramos carentes de alguma coisa que não
percebíamos. Olhando nosso passado é que vemos como somos atrasados no
presente. Nos filmes brasileiros antigos, parece que todos morreram sem
conhecer seus melhores dias.
E nós, hoje, nesta infernal
transição entre o atraso e uma modernização que não chega nunca? Quando o
Brasil vai crescer? Quando cairão afinal os "juros" da vida? Chego a
ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na
eternidade de seu atraso. Aqui, sem futuro, vivemos nessa ansiedade
individualista medíocre, nesse narcisismo brega que nos assola na moda,
no amor, no sexo, nessa fome de aparecer para existir.
Nosso
atraso cria a utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo. Mas,
ser subdesenvolvido não é "não ter futuro"; é nunca estar no presente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário